20.8.09

Caos

Se tivesse me avisado o motivo, eu nem teria vindo. Enviaria um telegrama. Economizaria palavras. Seria gentil e te pouparia de ver minha sincera reação.
Não é justo dar à luz quando as trevas precisam tanto.

3.2.09

A resenha do desconhecido

Ontem à noite comecei a ler um livro. Fiquei encantado. Mas só me lembro disso. Só me lembro que fiquei encantado. Não sei o título nem o autor. O tema ou as referências, então, são quaisquer coisas que não tenho a mínima ideia. Porém, quando penso no livro, sinto-me extasiado, como se o sangue circulasse mais rápido em meu corpo e uma febre estranhamente agradável se instalasse.
Já fechei os olhos para tentar sonhar com o livro. Mas não dá. Nenhum personagem fica claro em minha mente. E nem sei se tinha personagem.
Ah, o papel de que era feito o livro. O toque era macio, como se fizesse parte da história. Trazia paz. No trocar de páginas, sentia acariciados meus dedos, a respiração se aprofundava, e o ar ficava mais puro. Mas não me lembro de que papel eram feitas tais páginas.
Também não consigo remontar o narrador. Se era ele, se era ela, se falava em primeira pessoa, se apenas me contava algo de outros. Mas é certo que não me sentia mais sozinho. Foi como se um abraço me envolvesse, como se a temperatura do ambiente se tornasse amena para que o calor daquele abraço ficasse perfeitamente reconfortante.
Penso que foi nesse momento que dormi. Nada está muito claro. Apenas o recordo de um sorriso que me foi extraído involuntariamente. E quando relembro do que não consigo relembrar, ainda me sai o sorriso.
Fitei a estante do quarto, a mesa, o chão, tentei espiar pela porta entreaberta. Mas não devo procurar mais. Na verdade, não quero procurar. Eu, com este sorriso, assim, fico bem melhor.

31.1.09

Sono

- Meu amor, você dormiu mesmo? Eu pedi que não dormisse, que me fizesse companhia... Você não vai me escutar? Sua mãe tinha avisado que você não me escutaria, que as coisas iam mudar, que você não escutava mulher nenhuma, não obedecia mulher nenhuma. Até hoje tinha sido tudo perfeito. Você vivia para mim, eu vivia para você. E agora estou aqui falando sozinha porque pedi para você não dormir e você não me escuta. Mas tudo bem. Depois não me venha pedir isso ou aquilo, não me venha com aquele olhar de cachorro pidão, carente, sem dono. Eu deveria ter escutado sua mãe. Ela bem que me avisou. E agora você me deixa aqui, falando sozinha. E dorme. Falta de respeito. Eu deveria ter escutado sua mãe. Dá vontade de gritar. Que raiva. Parece que você não me entende. Não sei mais o q...
- Moça, por favor, a senhora está bem? Venha para cá.
- Faz ele acordar, por favor.
- Sinto muito.

17.12.08

Sem escolha

Dirigentes de centros acadêmicos de certas faculdades da USP e muitos dos freqüentadores da Praça Roosevelt e dos sambas e botecos da Zona Oeste paulistana, que adoram devorar vorazmente orelhas e grifos de resenhas já lidas, além de comentar de forma profunda o que ouviram resumidamente, podem começar a se preparar para mudança importante. Afinal, o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa prescreve: pseudo-intelectuais perderão o hífen. Pseudointelectual, a partir de janeiro de 2009, sempre ficará tudo junto. Seja em Luanda, em Lisboa, na Beira ou aqui, agora pseudointelectual é oficialmente igual em todos os lugares. Tudo igual e tudo junto. É isso aí! A união faz a força.

2.12.08

Alfinete

Ela esqueceu um chaveiro em minha casa. Uma bonequinha de pano, que acompanhava suas chaves do antigo apartamento. Quanto a mim, não esqueci nada na casa dela. Não tenho por que ligar, por que tocar a campainha, nem mesmo encontro desculpa para perguntar como andam as coisas.
Talvez, com o chaveiro, ela tenha deixado as lembranças, e por isso hoje se lembre apenas do chaveiro e de nada mais.
O chaveiro é meu vodu inverso. Olho para a boneca, é ela. Mas dói em mim.

28.11.08

Para Franz e João

De repente me deu uma fome incontrolável. Já dentro do supermercado, aproveitei que havia comprado a comida do gato e abri o pacote para experimentar a tal delícia de atum e salmão.
E era uma delícia mesmo. Além de ter os sabores diferentes em cada pedaço, os formatos coloridos me enfeitiçaram. Estrelinha vermelha, lua verde, bolinha amarela. Lúdico e saboroso.
Fiquei horas contemplando aqueles sabores e visões que me davam condição de deus.
Por fim, adormeci profundamente.
Ao acordar, estava num canto da casa, deitado no chão. Olhei para os lados e vi que estava em casa. Menos mal.
Senti uma vontade forte de mijar. Fui em direção ao banheiro, subi na caixa de areia e ali mesmo me aliviei. Com os pés, joguei areia em cima do que fiz. Estranhei muito, mas foi divertido. Olhei para o lado e meu gato apareceu na porta do banheiro. Olhou para mim e disse “bom dia, meu nego”. Levantou a tampa da privada e se aliviou, em pé. Sim, meu gato falou comigo, mijou em pé, e ainda por cima na minha privada.
Achei que tinha enlouquecido.
Saí correndo para a sala, olhei para a mesa e subi. Ao lado do vaso adormeci mais uma vez, com uma sensação boa demais para ser verdade. Por isso, era melhor dormir. E de qualquer jeito eu prefiro as noites para ficar acordado caçando aquele cara que virou barata.

27.11.08

Sobe

Jorrou as últimas lágrimas diante de quem não merecia. Consumiu seus derradeiros gestos em busca do que nunca alcançaria. Elevou-se ao topo da humilhação após ensaiar um nada-a-perder. E lá, debruçado sobre o parapeito do décimo andar, calculou o quanto de culpa cada um dos responsáveis pela sua desgraça carregaria pelo resto da vida. Por um momento, acovardou-se. Avaliou o estrago ao descer na recepção do prédio e ver o local onde teria caído. Sentiu prazer, como se visse realizado seu desejo de vingança. E assim, saiu pela rua a pensar na repercussão de seus atos, deixando sempre claro para si mesmo que ainda não havia desistido.
Parou num bar, encheu um copo, respirou, engoliu e sentiu algo estranhamente bom. Olhou para o lado e viu que ela o observava. Um sorriso. A retribuição do sorriso.
Estavam renovados seus estoques de lágrimas e gestos, e construiu-se mais um andar em seu edifício.