28.11.08

Para Franz e João

De repente me deu uma fome incontrolável. Já dentro do supermercado, aproveitei que havia comprado a comida do gato e abri o pacote para experimentar a tal delícia de atum e salmão.
E era uma delícia mesmo. Além de ter os sabores diferentes em cada pedaço, os formatos coloridos me enfeitiçaram. Estrelinha vermelha, lua verde, bolinha amarela. Lúdico e saboroso.
Fiquei horas contemplando aqueles sabores e visões que me davam condição de deus.
Por fim, adormeci profundamente.
Ao acordar, estava num canto da casa, deitado no chão. Olhei para os lados e vi que estava em casa. Menos mal.
Senti uma vontade forte de mijar. Fui em direção ao banheiro, subi na caixa de areia e ali mesmo me aliviei. Com os pés, joguei areia em cima do que fiz. Estranhei muito, mas foi divertido. Olhei para o lado e meu gato apareceu na porta do banheiro. Olhou para mim e disse “bom dia, meu nego”. Levantou a tampa da privada e se aliviou, em pé. Sim, meu gato falou comigo, mijou em pé, e ainda por cima na minha privada.
Achei que tinha enlouquecido.
Saí correndo para a sala, olhei para a mesa e subi. Ao lado do vaso adormeci mais uma vez, com uma sensação boa demais para ser verdade. Por isso, era melhor dormir. E de qualquer jeito eu prefiro as noites para ficar acordado caçando aquele cara que virou barata.

27.11.08

Sobe

Jorrou as últimas lágrimas diante de quem não merecia. Consumiu seus derradeiros gestos em busca do que nunca alcançaria. Elevou-se ao topo da humilhação após ensaiar um nada-a-perder. E lá, debruçado sobre o parapeito do décimo andar, calculou o quanto de culpa cada um dos responsáveis pela sua desgraça carregaria pelo resto da vida. Por um momento, acovardou-se. Avaliou o estrago ao descer na recepção do prédio e ver o local onde teria caído. Sentiu prazer, como se visse realizado seu desejo de vingança. E assim, saiu pela rua a pensar na repercussão de seus atos, deixando sempre claro para si mesmo que ainda não havia desistido.
Parou num bar, encheu um copo, respirou, engoliu e sentiu algo estranhamente bom. Olhou para o lado e viu que ela o observava. Um sorriso. A retribuição do sorriso.
Estavam renovados seus estoques de lágrimas e gestos, e construiu-se mais um andar em seu edifício.

21.11.08

Tatuagem

Como me doía ver aquele vermelho. Seu cheiro me trazia todas as sensações com as quais não queria ter mais contato. E a lembrança daqueles traços delicados que circulavam o fogo sem ser afetados me faziam mais mal ainda. Tinham um sabor amargo de bile expelida pelo nariz em jatos. O que me restava era o engasgar, a lancinância aguda a me machucar por dentro.
Que dores deliciosas.

6.11.08

José

Chegou em casa em silêncio, para fazer a ela uma surpresa.
No entanto, a surpresa foi dele, pois ela lá estava, em sua cama, completamente descabelada, cavalgando aquele macho que mais parecia um jegue.
– Amor, calma, não é nada disso que você está pensando!
Então, sentiu que as orelhas ardiam e a veia da têmpora latejava. Abriu a gaveta, pegou sua arma e, sem dar chance de defesa, deu um tiro no meio da cara dela.
Afinal, ele havia pensado: “Ela está apenas se divertindo, assim que acabar tudo vamos conversar e continuaremos bem”.

4.11.08

Defectivo

Primeiro, torrencialmente chovo
Então, quieto, cansado, garôo
Ao primeiro obstáculo, trovejo
Abre-se a porta, vento.

3.11.08

Menina

Entorpecida, ela começou a se declarar. Sem ser explícita, é claro – afinal, é uma mulher de pulso, independente. Mas se declarava, sem saber, com seus mais puros sentimentos.

Então, começou a maldizer seus passados, que até ali eram tão perfeitos. E foi completamente explícita. Dançou, cantou, girou e disse tudo o que queria. Estava em transe, na companhia desses passados, e ele nada tinha a fazer ali além de protegê-la com o olhar.

Assim, do mesmo jeito que foi, ela voltou. E ali estava ele, esperando, com seu olhar.

Deitados, bastaram poucas palavras e o calor do aconchego para que ela adormecesse desse sonho.